sábado, 13 de agosto de 2011

Carta ao meu pai

Pai,

Esta carta poderia (deveria) ter sido escrita há vários anos.
Nem eu, nem você, pensamos nisto. Ou, quando pensamos, a vida nos interrompeu e ficaram palavras sem dizer, muitos abraços sem se trocar, desculpas sem pedir, perdão sem se dar.
Mais que isto, pai, não escrevemos quase nada juntos. Eu gosto muito de música e o senhor tinha a música como profissão e paixão, mas, nem uma nota entoamos. O senhor sempre foi muito espirituoso, porém, nem uma piada contamos juntos.
Eu queria tantas vezes lhe relatar meus sonhos, mas o senhor estava longe, pensando nos seus que foram desfeitos. O senhor querendo contar suas apreensões, suas angústias. Querendo contar o seu passado e os seus motivos, e eu querendo falar do meu presente, do meu futuro, dos meus medos e inseguranças.
O senhor vivia me olhando como se perguntasse: “O que este meu filho pensa de mim”. E eu lhe olhando e questionando o que “meu pai quer de mim?”
Pai, eu vi seu corpo definhando aos poucos e tentava de alguma maneira testar o “seu computador”, que o senhor dizia que nunca falhava. ”Qual o número da senha do banco?” “Qual o número do meu telefone” “Qual o dia do nascimento de tal filho”?
O senhor estava muito próximo, mas, nossas vidas moravam muito distantes uma da outra.
Por vezes, sentia que o senhor iria me contar algo muito importante,pai. Alguma coisa que definisse ou que unisse nossas vidas tão dispersas.
Mas, o dia-a-dia interrompia as nossas verdades e o que sobrava eram apenas frases de um cotidiano meu e seu. “O que o senhor comeu hoje?” “Amanhã eu vou trazer minha mãe aqui”. E nas despedidas: “Deus lhe abençoe meu filho e lhe abra os caminhos”
Escrever esta carta está sendo muito difícil, pai. Para onde vou remetê-la?
Pai, saiba que eu sempre senti no fundo do meu coração que o senhor me fazia muita falta. Quantas vezes chegava da rua querendo contar algo que tinha acontecido comigo. Mas, minha mãe dormindo, os meus irmãos já com as suas vidas e eu apenas com o travesseiro como confidente. O que fazer? Para onde ir? Como resolver tal problema? Será que ela gosta de mim? Devo ou não tomar tal decisão?
Pai, sei que sabe que contei muito com a minha mãe, que sempre foi o que o senhor não pode ter sido. Mas, o senhor também sabe que não é a mesma coisa. Voz de mãe soa diferente, assim como uma pequena onda que chega cansada ou descansada à praia. E, quantas vezes, precisamos daquela onda forte que se arrebenta nas pedras. Voz de mãe lembra canção de ninar, mas quantas vezes precisamos é de um toque de alvorada a nos acordar para a vida, a nos preparar para a batalha.
Os nossos abraços lembra pai? Sempre foram muito rápidos e tímidos. Na verdade era como se tivessem que ser interrompidos para não permanecerem indefinidamente.
Minha mãe sempre nos olhando, nos observando e eu, em meio a ambos, correndo de ambos, querendo deixá-los a sós, porque, vocês também ficaram muito tempo sem dizer nada um para o outro. E como nos faz falta dizer, como faz falta um gesto, como faz falta... a falta sua, pai.
Hoje tento me agarrar ao que vivo. Dia após dia, pai, sigo o meu caminho. Mas, quase sempre sinto a vontade de perguntar: aonde essa estrada vai me levar?
Pai, aqui embaixo, a minha luta continua.
A banda e o coreto que o senhor tantas vezes tocou também continuam.
E as suas lembranças e sua falta também permanecem em mim.
Fique em paz, pai.
Seu filho!