segunda-feira, 21 de setembro de 2009

Palavras mal ditas

Palavras sempre buscam traduzir ou identificar algo. Existem muitas que de tanto serem pronunciadas perderam o seu significado. Amor, por exemplo. Quanta profundidade na essência, quantos significados diferentes e por vezes confusos, a sociedade acabou por criar. Outro exemplo? Corrupção. Quanta vergonha nos trazia, mas de tanto ser pronunciada e praticada, acabou por se transformar em atitude comum, nos roubando a indignação, tornando indigna a nação.
Violência é outro exemplo que já não nos causa maior perplexidade, nem espanto. É a banalização do uso que leva muitas palavras a serem consideradas sinônimas de outras: sexo com pornografia, liberdade com libertinagem, democracia com desgoverno, amizade com apadrinhamento e tantas outras.
Para explicar muitos dizem que os “valores atuais é que são outros”. O que vem a representar, ironicamente, que a própria palavra valor já se encontra desvalorizada.
Mas, para não dizer que existem somente maus exemplos, outras palavras que estavam esquecidas começaram a ser mais faladas. Uma delas é acessibilidade. Hoje, governos, empresas e instituições buscam proporcionar acessibilidade, ou seja, o acesso de todos a tudo.
Acessibilidade nos leva a outra palavra muito significativa: a sensibilidade. Para se proporcionar acessibilidade é preciso antes conjugar a sensibilidade. Uma inexiste sem a outra.
Outra expressão que virou slogan nos dias atuais é qualidade de vida, mesmo que não se saiba muito bem explicar o que seja isto. Fulano mudou de emprego e tantos mudam de cidade buscando a tal da qualidade de vida. Palestras são realizadas com o tema, cidades são analisadas por índices que mensuram a qualidade de vida. Qualidade deixou de ser substantivo para ser adjetivo, assim como aconteceu com a palavra ética. Interessante é que a expressão “qualidade de vida” nos leva a refletir que a vida fica sem expressão, quando não tem qualidade. Tudo deveria ter, por natureza, e por outra sonoridade, a qualidade devida (assim tudo junto), ou seja, a qualidade necessária ao para que o ser humano pudesse viver melhor na sua dignidade e em sua digna idade. Desumana e sem qualidade é a vida sem emprego e o emprego sem reconhecimento. Uma cidade sem hospital, ou com hospital mais sem médicos, sem remédios e sem equipamentos. Um bairro sem escola, uma escola sem professores. Um professor sem reconhecimento para repassar o conhecimento.
Palavras continuam a ser proferidas causando feridas nas palavras.
Palavras continuam a ser ditas.
Mal ditas palavras.

segunda-feira, 7 de setembro de 2009

VIDA NÃO SE ESTOCA

Você acorda, abre os olhos e sente a divina e insubstituível sensação de estar vivo. Mais que depressa pega o seu “cartão de crédito” e, apesar de não saber o saldo que ainda lhe resta, agradece a possibilidade de ter mais 24 horas para gastar como lhe aprouver.
Enquanto toma café (que dádiva esse prazer), pensa em como irá investir o seu tempo no dia de hoje. Seus olhos brilham, pois, o sol que lhe aquece, convida também para uma caminhada matinal, antes do trabalho. Agradece pela saúde do corpo e da mente. Reflete ainda que, enquanto muitos estão na estatística do desemprego, você tem a divina oportunidade de ocupar o seu tempo realizando algo que lhe traz satisfação e que, de alguma forma, atende a necessidade de alguém.
Em meio à reflexão, lembra de um amigo que está no hospital. Revê em sua mente as várias cenas que dividiram juntos e neste instante, lágrimas lhe descem pela face. Inclui em sua programação, um reencontro e, ao mesmo tempo, faz uma prece para que o “cartão” dele ainda tenha muitos créditos a serem gastos.
Enquanto caminha, percebe as diversas manifestações do cotidiano: um senhor e um cachorro andam juntos em uma silenciosa cumplicidade; um pai atento leva pelas mãos a filha em direção a escola; garis recolhem o lixo que se avolumam nas calçadas, como se fizessem parte de uma equipe de balé sincronizado; uma senhora de cabelos brancos carrega nos braços, o pão e o leite, símbolos diários de união familiar em uma mesa de cozinha; carros apressados trafegam nas artérias da cidade em um incessante e contínuo movimento. (O sangue parece também correr mais em suas veias). Simultaneamente, no banco da praça, amigos de idade avançada confidenciam e relembram histórias. Você agradece por ser espectador e ator coadjuvante no universo. “É a vida, é bonita e é bonita...”
Mas, uma cena lhe recorda o avesso. Uma criança pede esmola na calçada e ao olhar para ela, você se transporta a outros lugares. Pode sentir no corpo, vidas se esvaindo na seringa das drogas, no copo da bebida que transborda desencantos, na prostituição que seqüestra almas, na violência que aborta os sonhos.
Quantos “cartões” desperdiçando créditos valiosos? Quantas vidas estão em débito consigo mesmas? Quanto tempo ainda resta para um reencontro, um recomeço, um reviver?
Sim, porque a vida não se estoca, não se prorroga, não se economiza hoje para se gastar amanhã. Ela é perecível, singular, insubstituível. É terna. É divina, pois imagem e semelhança.
Vida é substantivo que convida a viver com todos os adjetivos: grandiosa, brilhante, ativa, solidária, feliz...
Você continua sua caminhada pelas ruas. A vida conta com você.