sábado, 28 de fevereiro de 2009

Carta ao meu pai

Pai,

Esta carta poderia (deveria) ter sido escrita há vários anos.
Nem eu, nem você, pensamos nisto. Ou quando pensamos, a vida nos interrompeu e ficaram palavras sem dizer, abraços sem se dar, confidências sem se expressar, desculpas sem pedir, perdão sem se dar. Mais que isto, não escrevemos nada em conjunto.
Eu gosto muito de música e o senhor tinha a música como profissão e paixão, mas, nem sequer uma nota entoamos. O senhor sempre foi muito espirituoso, contudo, nem uma piada contamos juntos.
Eu queria tantas vezes lhe relatar meus sonhos, mas o senhor estava longe pensando nos seus que foram desfeitos.
O senhor querendo contar suas apreensões, suas angústias.
O senhor querendo contar o seu passado, os seus motivos, e eu querendo falar do meu presente, do meu futuro, dos meus medos e inseguranças.
O senhor me olhando como se perguntasse: “O que este meu filho pensa de mim”. E eu lhe olhando e questionando o que este “meu pai quer de mim?” .
Eu via seu corpo definhando e tentava de alguma maneira testar o “seu computador”, que era o que o senhor dizia que nunca falhava.”Qual o número da senha do banco?” “Qual o número do meu telefone” “Qual o dia do nascimento de tal filho”?
O senhor estava muito próximo, mas, nossas vidas moravam muito distantes uma da outra.
Por vezes, sentia que o senhor iria me contar algo muito importante, alguma coisa que definisse ou que unisse as nossas vidas tão dispersas.
Mas, o dia-a-dia interrompia as nossas verdades, e o que sobrava era apenas frases de um cotidiano meu e seu. “O que o senhor comeu hoje?” “Amanhã eu vou trazer minha mãe aqui”. E nas despedidas: “Deus lhe abençoe meu filho e lhe abra os caminhos”
Escrever esta carta está sendo muito difícil.
Para quem eu vou remetê-la.O senhor está ainda mais distante.
Eu sempre achei no fundo do meu coração que o senhor me fez muita falta.Quantas vezes eu chegava da rua querendo contar algo que tinha acontecido comigo, minha mãe dormindo, minha irmã também, os meus irmãos já com as suas vidas e eu apenas com o travesseiro como confidente.O que fazer? Para onde ir? Como resolver tal problema? Será que ela gosta de mim? Devo ou não devo tomar tal decisão?
Contei muito com a minha mãe, que sempre foi o que o senhor não pode ter sido. Mas, o senhor sabe que não é a mesma coisa.
A voz de uma mãe soa diferente, assim como uma pequena onda que chega cansada ou descansada à praia. E, quantas vezes, precisamos daquela onda forte que se arrebenta nas pedras.
A voz de mãe lembra realmente uma canção de ninar, mas quantas vezes, precisamos é de um toque de alvorada, a nos acordar para a vida, a nos preparar para a batalha..
Os nossos abraços lembra? Sempre foram muito rápidos e tímidos.
Na verdade era como se tivessem que ser interrompidos para não permanecerem indefinidamente.
Minha mãe sempre nos olhando, nos observando e eu no meio de ambos, correndo de ambos, querendo deixá-los a sós, porque além de mim, vocês ficaram muito tempo sem dizer nada, um para o outro. E como nos faz falta dizer, como faz falta um gesto, como faz falta...a falta sua.
Hoje tento me agarrar ao que vivo, dia após dia, meu pai, eu sigo o meu caminho. Mas, quase sempre sinto a vontade de perguntar: aonde essa estrada vai me levar?
Pai, aonde quer que o senhor esteja, fique em paz.
Aqui embaixo, a minha guerra continua.
A banda e o coreto que o senhor tantas vezes tocou também continuam.
E as suas lembranças e a sua falta também permanecem em mim.
Seu filho!

3 comentários:

  1. Oi Wiliam,
    Hoje chorei ao ler a carta para seu pai.
    O que acontece é isso mesmo: Quando nos damos conta das coisas, a vida já está acabando e deixamos de dizer o quanto amamos pessoas tão especiais.
    Sempre tive grande admiração por vc.
    bjs
    Margarida Valente

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  2. Wiliam,

    Essa é a história que você escreveu que eu mais gostei! Sempre leio quando me sinto mal ou triste com alguma coisa!

    Beijos!

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  3. Caramba Wilian... Parece que eu li minha história... se bem que meu pai ainda está comigo! Há tempo de mudar a história! Abração!

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